segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A relação afetiva diante da morte - Célio Amaro


Neste dia de finados, partilho uma crônica que escrevi tempos atrás no estágio de Psicologia do Cotidiano. Minha temática de observação era “O comportamento das pessoas em cemitério: relação afetiva diante da morte.”

Assim que cheguei ao cemitério notei uma grande movimentação de pessoas. Escolhi como espaço a ser observado a capela 3. O falecido era um senhor de aparência frágil, magro e de semblante sereno. Confesso que me impressionou a magreza daquele corpo. Parecia que a morte já o rondava há muito!

Que seu corpo tinha sido entregue aos poucos e que, naquela ocasião, não teve mais jeito de entregar parte; ela veio e levou o pouco que restava...

Ao lado do caixão, onde “descansava” aquele velho e frágil corpo, várias pessoas rezavam a oração do Terço, uma tradicional e centenária oração da Igreja Católica. Permaneci por um bom tempo no interior da capela. Em vários momentos me senti envolvido com aquela gente. Parecia que fazia parte daquela família. Houve momentos que balbuciava as respostas das orações e preces que estavam sendo feitas em favor daquele senhor.

Terminada aquela oração, muitas pessoas deixaram o interior da capela. Por curiosidade as segui. Algumas acenderam cigarros, outras formavam pequenos grupos de conversas, outras foram até a lanchonete, localizada ao lado da capela, para lanchar.

No caminho de volta para a capela, uma cena me impediu de seguir: uma mulher amamentando uma criança. Discretamente me posicionei à distância para observar aquele fenômeno. Passei a refletir na dinâmica da existência humana: vida e morte como constituinte de uma mesma história. No interior da capela pessoas choravam a morte daquele senhor; e, ao lado, uma criança revigorava a vida sugando com prazer o peito da mãe. O caixão friamente amparava um corpo, frio e sem vida à espera de sepultura. Ali pertinho, a mãe com seus braços e colos quentes amparava, com especial afago, uma criança que reivindicava vida naquela lenta e permanente sucção. Sugava vida com inteira cumplicidade da mãe! Depois de um tempo, notei que a criança fechou os olhos e dormiu. A mãe, aparentemente feliz, sentia-se realizada. Gestos contrários ao daquele senhor que, ao fechar os olhos definitivamente, possivelmente tenha arrancado lágrimas... A criança respirava tranqüila, aquecida e revigorada nos braços da mãe; já o corpo daquele senhor apenas esperava sepultura. Foi-se o tempo da sucção pela vida! Ao lado daquela mãe, uma criança corria e pulava feliz. Estava ocupada demais com a vida! A morte não fazia parte do seu universo de compreensão.

As estripulias e gritos daquela criança foram interrompidos por outros ruídos. Era um senhor, funcionário do cemitério, empurrando um “carrinho” (não sei o nome daquele veículo!) que iria conduzir o caixão do falecido até a sua sepultura. A entrada daquele senhor no interior da capela foi acompanhada por todos, inclusive por mim. A posição que ocupava parecia revesti-lo de um poder muito grande: podia retirar o corpo. Por um instante o associei como “parceiro da morte”: um retirava a vida, o outro retirava o corpo. E o que restaria para aquela família? Não adiantava reclamar, a hora do sepultamento chegou. Notei que neste momento muitas pessoas estavam de braços cruzados. Pode ter sido um gesto natural, pois o tempo estava frio, ou procuravam tocar em seus próprios corpos como afirmativa de estarem vivos.

Aquele funcionário fechou o caixão e, com a ajuda de outras pessoas, o conduziu até o “carrinho”. Em seguida, uma pessoa se ocupou de colocar sobre o caixão a única coroa de flores que se encontrava na capela. E seguiram em direção à sepultura.

O caminho até o local do sepultamento durou alguns minutos. As pessoas acompanhavam silenciosamente. Dizer o quê? Neste tipo de partida quase sempre as palavras são enterradas junto ao corpo... Sepultura aberta! Ventava frio no local, o que fazia com que as pessoas se aproximassem umas das outras e se abraçassem. Gesto feito por muitos. O significado deste vento frio, não me atrevo a explicar. Silenciosamente as pessoas se aproximavam do caixão para a última despedida.

Depois este foi novamente lacrado. Desceu para a sepultura, ritual que não queremos participar.
Aos poucos as pessoas foram se retirando do local numa nítida certeza de que, no caminho de volta, faltaria alguém.
Célio Amaro (Padre Passionista, psicólogo)

Imagem - Carmem (Cemitério em El Salvador)

Um comentário:

  1. De cabeças boas, mãos comprometidas e braços acolhedores só pode sair vida. Esse texto mesmo falando de morte é dela que está cheio: VIDA

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