segunda-feira, 27 de novembro de 2017

RECORDAÇÕES: FLORIS, CARMEM, ALBANO NA CELEBRAÇÃO DOS 35 ANOS DA PJ CENTRO OESTE



Hilário Dick fez uma memória dos 35 anos da história da Pastoral da Juventude lembrando de três pessoas que estiveram no início da história como assessores/a. Leia e deixa o seu comentário.

É preciso dar-se o direito de voltar, sonhar, reconstituir pedacinhos que se vivei, reencontrar amigos e companheiros de luta que talvez já foram. Mandei a memória, por isso, para alguns recantos de Goiânia. Que saudade desta casa! Que raiva do que fizeram com esta Casa! Fui lá muitas vezes para alimentar meus sonhos e dar de comer os sonhos que carregava em mim.


Não era só Casa; eram pessoas. As que estão aí são somente símbolos dos adultos e jovens, dos ricos e dos pobres, dos urbanos e das periferias, de estudiosos de juventude e pessoas que desejavam aprender. Berg, Alessandra, falecido Lourival e Geraldo eram pedras daquela casa, janelas, portas, livros, bibliotecas, cantos, rezas. Pena que a Carmem não esteja na  foto.
Alguém consegue medir a dor deles quando viram a “Casa da Juventude” vendida, mais e menos santamente, mas vendida?

A memória conseguiu encontrar, contudo, esta foto antiga e memorável: Carmem, ainda quase menina, e Floris (Florisvaldo), um assesor como houve poucos em nossa América Latina. Um câncer o incomodou anos e anos até que conseguiu levá-lo para as multidões apocalípticas de jovens num céu que ainda vamos descobrir onde é.



A paisagem pode ser de Pires do Rio ou de alguma parte do Cerrado que os dois amavam e fizeram amar. Contudo, nem ele nem ela ficavam em casa. Iam pelo mundo a convite de jovens, adultos e bispos (ao menos alguns). Nem sei onde foi que nos encontramos, no fundo dessa casa de cor de tijolo. Foi uma amizade que ia florindo no meio de briguinhas pedagógicas. (Foto: encontro da Rede Latino Americana no Chile)

- Olha ela aí abaixo, ela encenando o quê? Cara de braba? Gozando da cara de alguém? Humilhando algum bispo? Não. Ela não iria com aquele chapéu que não deve ser dela. Ela tem uma perna um pouco menor que a outra, mas olhe-se a pose, o chinelo de dedo,  o beiço que faz. Deve ser numa festa pelas bebidas que desejam esconder-se. (Foto da Assembleia da PJ na Cidade de Goiás)
Pena que só me lembro da Alessandra, mas os dois devem estar provocando a Carmem para beber mais... Mas ela não era de beber; era de contar casos vividos em ambientes eclesiais, também de freiras co as quais falava as quais devi escandalizar um tanto. (Foto: Raimundo e Alessandra na festa dos 25 anos da CAJU)
     

Não faltam nem faltaram amigos que ela estimava e que era muito estimada por eles, pelo que ela era, fazia, pensava, falava, desafiava, sonhava. Mirim, Luis Duarte, Francisco, Jerônimo, Benta, Teresa, Cláudia, mãe, avô e avó. Raras as pessoas meio problemáticas que não gostam dela. Ninguém acredita que, depois de trabalhar anos e anos na Casa da Juventude, houve pessoas que quiseram fazer dela cobranças financeiras. Como mero símbolos, aí vão duas fotos que a memória escolheu. Nas escolhas sempre há certa injustiça, mas, em nosso caso, sempre há perdões.



 

terça-feira, 14 de novembro de 2017

O Bem Viver e as relações de poder - Múria Carrijo

Ao partilhar na Secretaria Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra), fagulhas do que foi refletido no Seminário do Bem Viver e Relações de Poder, fui motivada a tentar alinhavar reflexões sobre o Bem Viver, a partir do Encontro Nacional de Formação da CPT e do próprio Seminário. O Encontro Nacional da CPT aconteceu em outubro (Brasília) e o Seminário, em novembro (cidade de Goiás), ambos em 2017.

A motivação preparatória, tanto do Encontro de Formação da CPT como para o Seminário do Bem Viver, partiu do relato de experiências concretas dos povos, nas suas práticas do Bem Viver, seja em âmbito de América Latina, seja nas várias regiões do Brasil.
No Encontro Nacional de Formação da CPT refletiu-se sobre conjuntura política e bem viver, com os povos originários do Brasil e da América Latina. Pessoas que contribuíram com as reflexões: Bruno Lima Rocha, professor de ciência política da Unisinos/RS. Além dele, Lorenzo Soliz (Instituto para el Desarrollo Rural de Sudamerica - IPDRS), trouxe um panorama da história de seu país (Bolívia) e da luta dos povos indígenas. Ele falou que em 1960, período de ditadura, os povos indígenas do altiplano, Aymara e Quechua, retomaram as lutas, em defesa de seus territórios. Em seguida, a boliviana Marta Cabrera, do povo Qhara, reforçou que pela luta (1976 a 1990) os povos indígenas bolivianos conquistaram o direito coletivo sobre seus territórios. Outras pessoas que contribuíram com reflexões: Caciques Babau e Ramon, do povo Tupinambá, território Serra do Padeiro, na Bahia, refletiram sobre a luta do povo Tupinambá na retomada e defesa de seus territórios, a partir do ano 2000.  Sandro Gallazzi, biblista, trouxe reflexões sobre a Bíblia e o Bem Viver. Por fim, Moema Miranda, do Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe), provocou diálogos sobre o Bem Viver a partir de uma espiritualidade cósmica de amizade com a Terra. Para ela, “o capitalismo está fazendo muito dinheiro quando ele constrói e destrói. Nessa guerra do capitalismo contra a Terra, temos que definir claramente qual é o nosso lado, como é que nos posicionamos, onde é que nos conectamos com os que estão sendo derrotados. E quais são nossas possibilidades de reconexão”.
Após essas inúmeras reflexões, intermediadas por provocações trazidas pelos grupos, a compreensão das pessoas que estavam no Encontro Nacional de Formação da CPT foi algo parecido com isso: “não se reflete sobre Bem Viver desvinculando-se do Território; a prática do Bem Viver acontece no Território”.

O Seminário do Bem Viver e Relações de Poder, na cidade de Goiás, contou com a contribuição da doutora em Filosofia e Ciências da Religião, Ivone Gebara. Ela refletiu sobre Bem Viver como uma metáfora, um termo que nos apropriamos dele “de forma romântica”, como se os povos Aymara e Quechua já tivessem vivido a plenitude do Bem Viver e nós ficamos com os olhos fixos nesse horizonte “ideal”, almejando alcançar uma realidade que nem é nossa. Ivone nos provoca a desconstruir esse “lugar ideal”, a partir da seguinte reflexão: “a esperança que nos anima não tem lugares pré-estabelecidos de chegada; ela permanece em nós”. E questiona: “Por que estamos usando Bem Viver no lugar de Teologia da Libertação? Por que não falamos de Direitos Humanos e de Justiça nas nossas partilhas sobre as práticas do Bem Viver? Qual é a ética que fundamenta nossa caixinha do Bem Viver? Qual é a política? Qual é a religião? Fica tudo igual? O que o Bem Viver tem a ver com o poder? Como articulamos micro e macro poderes nos moldes do Bem Viver?”


Após profundas reflexões sobre as relações de macro e micro poderes (as quais não relatarei aqui),  Ivone disse algo parecido com isso: O Bem Viver, mais do que um horizonte utópico, exige um tópos (lugar), ou várias topografias. Temos que fazer fluir as energias (poderes), pois ao contribuirmos para que as energias circulem, nós admitimos a responsabilidade social de fazermos fluir a energia da Vida. Esse tópos (ou topografias) nos remete a perguntarmos pelas nossas crenças e convicções (Em que eu acredito?); provoca-nos para uma conversão à realidade... Em vez de ficarmos preocupadas em chegar “a um lugar ideal”, indaguemo-nos: “Quais são as frentes da realidade humana em que podemos atuar? O que podemos fazer? Como devolver a compreensão da realidade às pessoas, dentro do limite de todas as teorias?”

O Seminário Bem Viver e Relações de Poder foi organizado por uma Rede do Bem Viver que tem realizado outros seminários: Cajueiro (Centro de Formação, Assessoria e Pesquisa em Juventude),  Comissão Pastoral da Terra (CPT), CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), Curso de Verão, Pastoral da Juventude (PJ), Missionárias de Jesus Crucificado, Congregação de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho, Centro Cultural Cara Vídeo, Cáritas Brasileira, Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB-GO)  e Fraternidade da Anunciação. 

Múria Carrijo Viana, 11 de novembro de 2017.





Fotos - Cajueiro - Célio Amaro







sábado, 11 de novembro de 2017

Coisa de branco, até quando? Elisa Lucinda


foto retirada da internet https://www.google.com.br/search?q=elisa+lucinda&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj6_a-SrbbXAhVFDpAKHRdvDRsQ_AUICigB&biw=970&bih=457#imgrc=TYUSiZxKnVZfEM:

Elisa Lucinda comenta o episódio racista. Triste realidade do Brasil com os dados que ela apresenta. Um texto que precisa ser trabalhado, lido, discutido entre nós.

 Texto de Elisa Lucinda sobre o episódio de racismo envolvendo Willian Wack.

Coisa de branco, até quando?

           Escroto, consciente, ativo, legitimado, estrutural, septicêmico em todos os órgãos da nação, o racismo de William Waack não é só dele. Essa é a pior notícia. “Coisa de preto” é subtexto corrente na mente de grande parte de uma sociedade criada sob os parâmetros da Casa Grande. O diabólico plano que começou com tráfico, tortura e assassinato do povo negro e que durou quatrocentos anos, é mais nefasto e homicida do que os cinco ou seis anos do holocausto judeu e essa dor a humanidade respeita mais. Não estou dizendo que uma dor é menor do que a outra. Mas afirmo que o holocausto da escravidão negra continua até hoje e não comove nossa sociedade. Não importa, em geral, a quantidade de negros sem nome, sem sobrenome nobre que é assassinada diuturnamente nas favelas e periferias deste país. Ainda rola no imaginário brasileiro a ideia obsoleta de que “preto bom é o de alma branca”, é o sem voz, e há neste imaginário uma desvalorização da etnia negra como se houvesse para isso alguma defesa científica que apontasse no DNA de uma raça sua propensão à sub-humanidade.
               O que impressiona muito no vídeo do Willian é sua falta de conflito com o tema, seu conforto escancarado e muito bem acomodado dentro de sua convicção. Quando a Globo que, felizmente, com muita rapidez, prontamente se posicionou repudiando e afastando o jornalista, afirma que vai pedir esclarecimentos dos fatos dá vontade de ser uma mosquinha na cabeça deste profissional para ver qual será o melhor argumento nos bastidores dessa saída. A situação é indefensável. Não falou sem querer, não estava nervoso. Repito: trata-se de uma convicção. Absolutamente consciente e levemente temeroso de que sua fala pudesse comprometê-lo, ele, textualmente, quase evita falar abertamente: “Tá buzinando por quê? Ô seu merda do cacete! Deve ser um... Não vou nem falar quem. Eu sei quem é... Você sabe quem é né?” Mas não resistiu. Saiu. Pulou da boca. Pensa assim. Concorda com o racismo. É porta voz dele. Estamos diante de um vazamento e por ele podemos supor quantas dessas atitudes não chegam a público e fazem a graça de muitos bastidores. Não seria leviano de minha parte afirmar que essa não é uma atitude isolada deste jornalista. Um detector de discriminação racial afinado talvez não tivesse dificuldade em encontrar na educação, dele e de sua família, a ideologia revelada no patético vídeo gravado em frente à Casa Branca. Ele estava nos Estados Unidos, ele falava português, ele estava em seu “camarim” e não imaginou que a máscara Waack estava sendo retirada antes do público deixar o teatro.  Sou atriz, vivo no teatro, e sei que se o público por algum motivo avista o truque, a ponta da carta escondida sob o manto do mágico, não há outra saída para o artista se não render-se à verdade. Já era. O público viu. Fodeu. É melhor admitir. Flagrantes são inegáveis. Qualquer tentativa de desqualificar a verdade flagrante é constrangedoramente impotente.
               O que está em jogo aqui é como deter o escravagismo moderno, esse que foi trazido através da linguagem das escrotíssimas expressões que destroem a auto estima do povo negro a cada minuto, e que vão mantendo a obra da escravidão na cabeça de jovens brancos, de crianças brancas, em pleno 2017. A semente do mal é reproduzida em todos os lugares, inclusive nos jornalismos, inclusive nas ficções. Sou jornalista também de formação, e sei da responsabilidade pública que temos com a informação, sei do poder de influência da palavra jornalística na formação de opiniões. Diante disso numa democracia, ter um jornalista que apresenta um jornal importante numa emissora que alcança milhões de espectadores diariamente, defendendo posturas racistas, expondo-se inclusive judicialmente a um processo, aponta para uma demissão sumária deste profissional. Não vejo outra saída. Para mim é tão grave quanto um médico que não atende um paciente preto e pobre na emergência. Para William Waack a vida do preto, o pensamento do preto, a atitude do preto, os direitos do preto são menores e tudo nele vale menos. Está entranhado em seu DNA cultural branco e dominador tal aberração intelectual. Sua ignorância é sofisticadamente tosca, uma vez que ocupa um cargo nobre na tele informação. E essa ignorância é tão sofisticada quanto perniciosa, representa um pensamento vigente que raramente tem coragem de mostrar a cara, de sair do armário. Mas é este pensamento que gera a atitude prática de fechar portas, e de provocar em nós, em nossas organizações civis e nas leis, a feliz estratégia dos sistemas de cotas. Quando Cazuza diz que a burguesia fede é a isso que ele se refere. Há uma hipocrisia católica, disfarçada de caridosa, ornada dos aparentes bons costumes, mas que chafurda na lama tóxica de seus preconceitos e na sua luta pela preservação das senzalas, dos quartos de despejos e da persistência variada das chibatas. Presídios, quartos de empregadas, entulhos das favelas e periferias, tudo têm como modelo os porões da escravidão.
            Eu teria vergonha de ensinar racismo aos meus filhos, William não tem. Eu teria vergonha de ser racista em meu local de trabalho, William não tem. Eu teria vergonha de ser racista sendo brasileira e estando trabalhando em terras estrangeiras, William não tem. De usar a minha língua contra o povo que construiu a minha nação, William não tem. E por isso representa uma vergonha para o povo brasileiro. Sua declaração bate na cara dos negros que labutam para o sucesso da história desse país e da empresa que ele trabalha; sua declaração é um acinte, um achincalhe no talento de grandes atores negros que deram e dão sua arte à teledramaturgia brasileira contribuindo para um sucesso de público que atravessa décadas. Sua declaração atinge  também em cheio a consciência de brancos a quem ele não representa, os constrange, os convoca a limpar a própria barra. Puni-lo com  delito o torna naturalmente afastado da emissora. Se a Rede Globo não quer compactuar com uma atitude discriminatória não pode ter em seus quadros quem pensa diferente disso, uma vez que tal quesito está espalhado em todos os conteúdos de sua programação. Neste momento, estou fazendo a campanha da ONU chamada Vidas Negras. Os números são alarmantes, perdemos grandes exércitos de meninos que saem da escola para o crime e, entre estes, milhares são assassinados sendo inocentes, só por serem negros. E só. Por valerem menos.
            Mas a tragédia só se realiza, só chega a virar sangue, a virar tiro de fuzil, só chega a matar depois de se consolidar na mente de muita gente, e muita gente que manda neste país. É este jogo que nós temos que desmontar. Quando se diz “coisa de preto” como sinônimo de inferior ou ruim, no fundo estamos produzindo um conteúdo que dará autorização para matar. William Waack não é o único a pensar assim, é isso que o vídeo veio nos revelar. É coisa de branco e aos bons brancos deve envergonhar. O assunto está bombando.  A questão racial no novo  filme de Daniela Thomas vai ser assunto nessa sexta no Pedro Bial. Não dá mais pra segurar . O mundo pede abolicionistas modernos e quer saber de que lado você está.