Com
o placar de 42 votos de deputados favoráveis à Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) e 17 contrários, a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Câmara aprovou no último dia do mês de abril (30), a
tramitação da PEC 171/93 que propõe a redução da maioridade penal no
Brasil de 18 para 16 anos. O texto permite que os jovens com idade
acima de 16 anos que cometerem crimes possam ser condenados a cumprir
pena numa prisão comum. A aprovação da tramitação da PEC é o primeiro
passo para o andamento da proposta na Casa, na qual os deputados avaliam
se o texto está de acordo com a Constituição.
Se aprovada na Câmara, a PEC seguirá para o Senado, onde será
analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e depois pelo
plenário, onde precisará ser votada em dois turnos. A recente aprovação
da PEC na Câmara gerou muitos protestos de grupos contrários à proposta.
Até a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou comunicado expondo a
sua posição contrária à redução da idade penal. Segundo a entidade, a
medida poderá agravar ainda mais a violência no país.
Para debater o
assunto, o Caderno Escola entrevistou o professor da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS-UFG), Flávio
Munhoz Sofiati. Nesta entrevista, o doutor em sociologia pela
Universidade de São Paulo (USP) afirma que a ideia de redução da
maioridade penal é equivocada, pois não irá coibir a violência no país.
Para ele, o Brasil necessita de políticas públicas eficientes para a
juventude, além de uma economia forte, que possibilite oportunidades de
inclusão e uma boa qualidade de vida ao jovem brasileiro.
Professor, em que contexto histórico, político e social surge essa proposta de redução da maioridade penal?
Olha,
ela nasce em um contexto de extremo conservadorismo no congresso. Esse
atual conjunto de deputados eleitos no ano passado, talvez seja um dos
mais conservadores que o Brasil já teve nesse período recente da
redemocratização. A redução da maioridade sempre esteve na pauta, a
aprovação da tramitação da PEC na Câmara evidencia que hoje é algo muito
real a possibilidade dessa proposta de emenda alterar a constituição,
assim como é a proposta de emenda da terceirização e o ajuste fiscal do
governo, por exemplo.
Fale um pouco mais sobre esses pontos citados...
Basicamente,
você tem de um lado uma proposta de redução da maioridade penal com o
discurso de ser uma medida imediata para resolver o problema da
violência, mas por outro lado o ajuste fiscal e o projeto da
terceirização que vão precarizar ainda mais a vida do povo brasileiro.
No meu ponto de vista, são projetos totalmente contraditórios. Porque se
os argumentos fossem reais, e se houvesse de fato o compromisso com a
redução da violência, inevitavelmente teria que se pensar em leis e
projetos que melhorassem a vida do povo.
Existem países que adotaram a redução da maioridade penal. Qual a sua avaliação sobre isso?
Vários
países decidiram adotar a redução da maioridade penal, existem muitos
que aderiram a propostas extremas de 12 a 14 anos. E foi observado que
não houve nenhuma consequência positiva ao adotar a redução da idade
penal. A política de tolerância zero de Nova York, que é bem difundida
no Brasil, o tolerância zero para o crime, causou na população jovem
americana dos bairros periféricos a construção de uma realidade cultural
que transformou a prisão de adolescentes e jovens em rito de passagem,
então todo jovem de determinada faixa etária acabou sendo preso. O que
não resolveu o problema da violência e nem da criminalidade, apenas
contribuiu para estigmatizar ainda mais um segmento social.
Qual a sua opinião acerca da amplitude que o debate sobre a redução da maioridade penal está tomando?
A
população em geral sempre debateu esse tema e em qualquer oportunidade a
grande imprensa traz o assunto com exemplos de crimes extremos
envolvendo jovens e adolescentes, principalmente pela televisão, com os
seus programas jornalísticos atuais em que a notícia é o extraordinário e
não o ordinário, dando grande divulgação para os crimes, gerando um
espírito geral de impunidade na população, o que não é o real. Levando
em consideração todas as pesquisas, inclusive as acadêmicas, percebe-se
que os crimes envolvendo jovens entre 16 e 18 anos não são os
protagonistas da violência. Isso deveria ser levado em consideração ao
se pensar na questão da redução da maioridade penal. Se nós estamos
realmente preocupados em resolver o problema, tema grave no Brasil, nós
precisamos pensar em políticas públicas para a juventude, políticas
concretas. Hoje, a principal política pública do Estado para o jovem é o
cárcere. E a redução da maioridade penal vai ampliar ainda mais essa
política pública que é contra a vida.
No seu ponto de vista, quais as implicações sociais da redução da maioridade penal?
O
governo vai legalizar algo que existe, porque os jovens entre 16 e 18
anos, até mais cedo, já são encarcerados. No passado já existiu a
Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem), que hoje se chama
Fundação Casa. No Estado de Goiás você tem os centros de
ressocialização, que são basicamente cárceres para os menores de idade.
Então a redução vai primeiro legalizar algo que o Estado já faz, que é
prender os jovens. As unidades de internação brasileiras, em todo o
Brasil, são precárias. E cumprem um papel de repressão e não de
ressocialização dos jovens.
Por que a diminuição da maioridade penal não é a solução para o problema da violência?
Esse
é um problema histórico no Brasil. Quando você carceriza o jovem,
significa que você fracassou em todas as possibilidades de
ressocialização na escola, na família, na sociedade. Quando você chega
na situação de encarcerar o jovem significa que fracassou na
possibilidade de integração do indivíduo na sociedade. O estado acaba
tirando dele a responsabilidade de investir na educação, na escola, na
saúde. Quando o Estado ou a grande imprensa culpabiliza o indivíduo,
abre mão de toda a responsabilidade sobre aquele conjunto social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente precisa mudar?
O
Estatuto fala em medidas de ressocialização e a redução da maioridade
penal vai tornar ainda mais ineficaz a lei que já existe e não é levada
em consideração. Ou seja, ela viabiliza que o Estado se legitime na ação
de criminalizar ainda mais os segmentos pobres da juventude. O Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) precisa avançar, ele já é
ultrapassado, instituído em 1990, é necessário investir em uma lei que
já existe e que pode ser implementada. Por que o Estado não investe
nessa perspectiva? Por que ele quer investir ainda mais na repressão?
Prender me parece que hoje é a opção do Estado e precisamos convencer o
governo que educar é a melhor solução para combater a violência.
Como o senhor avalia os argumentos dos que defendem a redução da idade penal?
Os
argumentos são de cunho moral e são baseadas em perspectivas
teológicas, não existe a análise de estudos e pesquisas. E o mais triste
é ver a publicação de informações, na imprensa tradicional e
alternativa, que não são corretas. O jovem do sexo masculino, pobre,
negro e que mora na periferia, está incorporando hoje a figura da pessoa
que precisa ser exterminada.
Quais os caminhos para conter essa violência e dar melhores condições para o jovem se desenvolver?
A
primeira coisa é criar uma estrutura econômica macro de inclusão. O
jovem precisa sentir que faz parte da sociedade. As instituições estão
em crise, pois os jovens não às incorporam. Eles criticam a empresa, a
igreja, o Estado, o sindicato, por exemplo, porque nenhuma dessas
instituições conseguiu suprir a necessidade de inclusão do jovem. Quando
ele se sente parte, ele muda o seu comportamento. E para se sentir
parte, nós adultos precisamos partilhar poder. Isso significa fazer
mudanças em nossas estruturas, na escola, na família, na universidade,
na igreja, no Estado, na empresa, por exemplo. E não estamos dispostos a
fazer isso, pois é preciso muita disposição.
As expectativas do jovem não são atendidas...
O
jovem hoje tem fome de integração, ele está à margem da sociedade. Para
isso acontecer (integração) é necessário o desenvolvimento de uma macro
economia que proporcione novos postos de emprego e qualidade de vida,
por exemplo. Ele precisa de condições mínimas para ter uma vida saudável
e a possibilidade de pensar a sua sobrevivência para além do crime.
Nenhum jovem teve a opção de escolher entre ser médico, engenheiro,
advogado, professor ou traficante. A verdade é que as opções ofertadas a
ele são muito restritas. A visão que ele tem do professor, do médico,
do advogado, do engenheiro, é a pior possível. Então, nós temos hoje uma
divisão de classe entre as profissões. Precisamos romper com essa
barreira, essa fronteira que existe hoje no Brasil de classificar as
profissões a partir da origem de classe. Todo mundo tem o direito de
seguir suas aptidões. E eu tenho certeza que os jovens no Brasil podem
ser bons médicos, bons advogados, bons professores, mas pra isso eles
precisam ter oportunidades.
Como os jovens podem alcançar essas conquistas?
Através,
por exemplo, de políticas públicas. Mas considero que hoje não temos
políticas voltadas de fato para a juventude no Brasil. Na verdade,
elas são poucas. Temos o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema de
Previdência Social, que são políticas que precisam ser preservadas e
valorizadas, já consolidadas e que os governos em geral, tentam o tempo
todo precarizar. Do ponto de vista da Juventude, o que se tem é o
Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), difundido como
principal política pública de juventude, mas várias pesquisas mostram
que o programa é precário, que não consegue superar a ideia das ações
atuais em torno de projetos e ações. Uma política pública e eficiente
precisa ser interdisciplinar, interministerial, capaz de envolver um
conjunto abrangente de profissionais qualificados para pensar uma ação
conjunta, mas isso não existe. As cotas raciais poderiam ser um bom
exemplo, mas elas não são efetivas pelo fato de ainda depender da
disposição das instituições de ensino em adotá-las.
No Brasil, também temos um problema ligado ao extermínio de jovens. Qual o perfil do jovem que está sendo exterminado?
Se
a gente for considerar o número alarmante de assassinatos de jovens
ocorridos através dos braços coercitivos do Estado, principalmente da
policia militar, é possível dizer que existe o extermínio de um segmento
social importante. Que são os jovens do sexo masculino, negros e pobres
com idade entre 15 e 25 anos, moradores das periferias das grandes
cidades do Brasil. Esse segmento social, se você for buscar estatísticas
referentes às causas de morte, elas vão mostrar que há um número
expressivo de mortes causadas por motivos violentos. Esses argumentos,
infelizmente, não são considerados no momento em que os parlamentares
vão debater o tema da redução da maioridade penal. No meu ponto de
vista, reduzir a maioridade penal não resolve a violência para os jovens
e nem para a sociedade.
Quem é e o que faz?
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista
Julio de Mesquisa Filho (UNESP), mestre em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e doutor em Sociologia pela
Universidade de São Paulo (USP), Flávio Munhoz Sofiati é docente na
Universidade Federal de Goiás (UFG). Na instituição, atua no Curso de
Especialização em Políticas Públicas e no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia Social. Tem experiência na área de Sociologia,
com ênfase em Teoria Sociológica Clássica, Sociologia da Religião e
Sociologia da Juventude, atuando principalmente nos seguintes temas:
Juventude e Religião, Catolicismo Contemporâneo, Movimento Carismático,
Teologia da Libertação.