sábado, 7 de janeiro de 2017

PODE CHAMAR-ME DE FRANCISCO Hilário Dick




Hilário Dick foi provocado por muitas pessoas para ver a série da Netflix sobre o Papa Francisco. Depois muitos de nós queríamos saber como foi o seu olhar e o que lhe provocou como jesuíta.  Eu e Vanildes comentamos sobre a emoção, sobre as tensões de tantas decisões, sobre a música, sobre o compromisso com os pobres, a proximidade com a vida cotidiana. O momento histórico das ditaduras militar e do capital sobre os trabalhadores/as atracando-lhes as possibilidade de vida e de dignidade. Temas que faz pensar na conjuntura que vivemos. Peço que vejam a série de 4 capítulos e também, deixe aqui o seu comentário. Carmem

Hilário deixa suas reflexões sobre a série.

 Ontem assisti, com certa ansiedade e reverência, o documentário sobre o Papa Francisco, da Netflix, atualmente com mais de 80 milhões de assinantes. O caso é que assisti as quatro partes do documentário num fôlego só. Não entendo muito de filme ou filmagem, mas desejava muito ver Pode me chamar de Francisco. Não sei se eu queria ver o Papa (o Francisco) ou o Jesuíta (o Bergoglio), mas vi Pode me chamar de Francisco. Ainda preciso descobrir porque gostaria de me espelhar nele. Acho que vejo e toco nele a utopia. Bergoglio, voltando dos estudos na Europa, foi mandado dar aula num Colégio de ricos, em Córdoba: aulas de literatura. Que cena mais linda aquela do escritor argentino, de fama mundial, cego, falando com aqueles estudantes. Vendo aqueles alunos e observando o Padre Jorge, lembrei-me do Hilário dando aulas no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. Ele já era padre, e eu não. Eu era “frater”. Se ele teve que ver seus alunos soltando um porco na sala de aula e no corredor, tive que enfrentar alunos da mesma idade falando-lhes ou impingindo-lhes coisas de literatura brasileira, portuguesa, latina e grega e teoria literária, o que significava, de alguma forma, segurar um bode na sala de aula. Pouco ou nada havia ouvido falar de Bergoglio, então; só sabia que os jesuítas argentinos não eram bem jesuítas porque não haviam aceitado com grande agrado as Conclusões da Congregação Geral 32 dos anos de 1974, Congregação onde Bergolio estivera. Ele era padre novo porque fora ordenado, em Buenos Aires, em 13 de dezembro de 1969, dia depois da Festa de Guadalupe, enquanto eu fui ordenado, em Santa Cruz do Sul no dia 27 de dezembro do mesmo ano – 1969, na festa do apóstolo São João. 

Se, no Brasil, estávamos em anos de ferro (veja-se 1968), em 1969 deu-se o Cordobazo na Argentina, que Bergoglio deve ter visto. Tem vezes em que eu estranho coincidências e desencontros, mas nunca fui superior enquanto ele, já em 1973, era Provincial da Província da Argentina. Se ele nasceu em 17 de dezembro de 1936, eu nasci um pouco depois, em 12 de maio de 1937. Não dá nem meio ano de diferença. Ele pegou os anos muito duros e tenebrosos da Argentina: em 1972 volta Perón; em 1976 dá-se um golpe militar sangrento; de 1973 em diante, fim dos movimentos de jovens. Bergoglio estava no meio disso tudo, como Mestre de Noviços e Provincial. Dá para imaginar?  Ele deve ter sido muito amigo do bispo Angelelli – um bispo profeta e amigo dos pobres e dos homens do interior da Argentina - porque, quando soube do assassinato dele pelos militares, chorou. Angelelli dizia: Não venho para ser servido, mas sim para servir. Servir a todos, sem distinção alguma, nem de classes sociais, nem de modos de pensar ou de crer. Como Jesus, quero ser servidor dos nossos irmãos, os pobres. Nos anos de 1980, após seu provincialato, Bergoglio voltava a Córdoba quando, em 1992, João Paulo II o nomeava bispo.

Falando do documentário, minha primeira estranheza é que ele – no documentário – quase não ri. Embora livre e solto, a vida dele aparece dura, com a dureza da vida por fora e por dentro da Companhia de Jesus. Talvez não convinha... Francisco não é apresentado como jesuíta. Haveria certo escanteio? Todavia, ele vive no meio de uma Buenos Aires carregada de terror político-militar e de pobreza. Basta falar ou recordar a dor horrível das mães procurando seus filhos desaparecidos e o que significou a Guerra das Malvinas com 700 jovens mortos por uma atitude estúpida de militares querendo afirmar certo tipo de nacionalismo besta. Quem vê Bergoglio entrando nas periferias, encontrando sacerdotes ameaçados e mortos, lembra-se do Movimentos dos Sacerdotes do Terceiro Mundo e de tanta outra utopia. Dureza ideológica e de perseguição, dureza e sofrimento de periferias contrastando com o luxo de poucos. Francisco viveu o horror da “Noite dos Lápis” e, naquele automóvel sem chamarizes e com aquela batina rota, Bergoglio ia firme espalhando esperança e distribuindo firmeza.

Se o documentário não me fez ver Bergoglio rindo com aquele sorriso descarado de argentino, fez-me comover, contudo, quando ele chorou, especialmente em duas ocasiões: uma, quando assistia a missa numa das igrejas, na Alemanha, onde simpatizava com as obras de Guardini, e ouvia a história daquela senhora sentada ao seu lado e pedia desculpas porque chorava; outra, quando lhe noticiaram a morte do bispo da região de Rioja – do qual já falei - e Bergoglio sai para um canto, fora de casa, e chora numa esquina de jardim. Ele não era contra a Teologia da Libertação. Inventou outra forma de dizer e praticar o mesmo com palavras menos perigosas. Em 1973 ele estivera na 32ª Congregação Geral dos Jesuítas e teve muita dificuldade em transmitir aos seus companheiros o que lá aprendera - que o serviço da fé a e a promoção da justiça devem formar um casal indissolúvel. Talvez por isso Bergoglio ficou um tanto escanteado entre os jesuítas, mas mostraria mais tarde – como Papa – tudo que significava este casamento. Deve ter sido nestes anos de provincialato de Francisco que o Padre Pedro Arrupe, Geral da Ordem, foi – por assim dizer – quase obrigado a fazer uma visita à Companhia de Jesus na Argentina. Isso, contudo, não vi no documentário.


Bergoglio sente-se muito “em família”, tanto com seus familiares como com as pessoas que procuravam ser família. A dor das “Mães de Maio” se encarna naquela forma bonita de ver a dor dos outros. Que maravilha quando o povo da periferia pega o bispo e o atiram para o ar, fazendo festa depois de uma conquista de permanência de moradia. Transparece, no documentário, um Bergoglio afetivo, evangélico, humilde e educador – assim como já tinha sido nas aulas de literatura em Córdoba. Com aquela pasta preta, cheia de firmeza e de esperança, lá vai Francisco para diferentes Palácios, especialmente o da Justiça, um pouco para as igrejas suntuosas e muito pelos becos que não tem nome, mas só apelido em todos os lugares do mundo. Parece que a pasta preta sempre tinha algo a revelar e a afirmar. Sei que todos os jesuítas deveriam chorar mais que eu vendo este documentário, mas desconfio que uns tantos não vão gostar de ver o que deveria ser o coração de todo jesuíta. Hoje, ainda, li Francisco recordando o que os jesuítas aprenderam ou deveriam ter aprendido há mais de 500 anos: “a pobreza é mãe e muro” – gera vida e defende.
P. Hilário Dick
Janeiro de 2017

Um comentário:

  1. Que bacana essa análise do Hilário.
    A série também, vale a pena assistir.

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