quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Os temas que precisam ser aprofundados na formação

 


 

Os/as participantes do Seminário Bem Viver – Tecendo Redes de Proteção à Vida identificaram, ao longo do seminário, temáticas e assuntos que precisam ser melhor estudados e aprofundados em vista de ações mais qualificadas e que gerem maiores transformações nas realidades. Abaixo apresenta-se uma síntese das temáticas elencadas pelos participantes.

Há uma grande necessidade de compreender melhor a diferentes realidades (26), de modo a refletir melhor e mais coerentemente a conjuntura (6). É preciso, compreender, estudar e refletir a vida das mulheres (6), dos/as indígenas (6), dos/as negros/as (8) dos povos tradicionais (5), do povo do campo (7), da população LGBTQIA + (3), dos/as adolescentes (7) e dos/as jovens (36) para não ser indiferente ante suas vidas. O cuidado com a Casa Comum (3), ecologia (2) e meio ambiente (2) e natureza (2) também precisa ser pauta do estudos e ações.

Evidencia-se também a necessidade de conhecer e entender profundamente os processos de desigualdade (13), racismo (8), patriarcado (2), xenofobia (2), colonialismo (5), machismo (4), homofobia (2) e as demais violências (42) para combate-las e erradicá-las. Nessa mesma direção, os/as participantes do Seminário, recordam a necessidade de compreender metodologias (3), processos e mecanismos do trabalho em Rede (6) para que a defesa da vida (35) e sua proteção (6) sejam efetivadas.

Por isso mesmo, temas como relações sociais (12) e interpessoais (4), feminismo (3), relações de gênero (8), sexualidade (4), justiça social (8), justiça restaurativa (2), migração (1), bem viver (9), moradia (2), saúde (2), libertação (2), educação popular (6), Deus (5), espiritualidade  (4), teologia (3), memória (2), psicologia (2) e  mundo do trabalho (8) também são assuntos pertinentes e que pedem processos formativos.

Além disso, as temáticas envolvendo as políticas (33), as políticas públicas (18), o controle social (2), a participação popular (4), a mobilização popular (2), direitos (8) e direitos humanos (5) também tem importância e pedem aprofundamento teórico.  

Os participantes do seminário evidenciam a necessidade de contínuos processos formativos em diferentes áreas do conhecimento e saberes para que as ações em vista da defesa da vida sejam sempre mais qualificadas e eficazes. A necessidade de estudo também se faz para que não sejamos indiferentes à vida concreta das pessoas.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

"Memórias Pejotianas". Eu, "terra de bacuri"! Odalice Gonçalves

 

Interpelada, instigada, estimulada...acabei me sentindo motivada a "puxar" na memória fatos, fases, momentos, acontecimentos que deram corpo a minha história, especialmente nos tempos em que, cronologicamente, integrava a fase mais fértil da humanidade -juventude, "terra de bacuri".
Na verdade, a história da juventude de muitos de nós, "frutos", teve início um pouco antes de existir a Pastoral da Juventude na diocese. A minha assim o foi. Ingressei, na minha adolescência, numa "comunidade" jovem chamada CAJU e depois na COMIC, que era a Comunidade Iporaense Cristã, de jovens. A nível diocesano existia o TLC (Treinamento de Liderança Cristã) e uma coordenação diocesana da juventude da qual eu fazia parte quando aqui chegou, no início de 1981, Pe. Florisvaldo (Floris) com uma nova proposta para a nossa juventude.


A grande novidade trazida por Pe. Floris era a formação de pequenos grupos de base com uma nova metologia de atuação. Nossa cultura era de "comunidades jovens" que eram formadas por um grande número de participantes. Aliás, a eficácia, o sucesso de uma comunidade jovem eram medidos, essencialmente, pelo numero de integrantes da mesma. Pe. Floris chega propondo formação de pequenos grupos na base utilizando a metologia VER-JULGAR-AGIR-AVALIAR. Aquele novo jeito de trabalhar, de ser jovem, a princípio enfrentou uma certa resistência mas, aos poucos, foi despertando uma maior consciência da realidade, do papel que o jovem exercia e o desejo de ser agente da própria história.


Foram 10 meses de cansativas reuniões com nossa pequena, insegura, despreparada (ao menos diante daquela"novidade") e, por que não confessar, relutante equipe (Brito, Simair, Manoelino, Gildo e eu, se não me falha a memória). Naquele período Pe. Floris ia conhecendo a região e iniciamos "experiências piloto" de formação de pequenos grupos em algumas paróquias. Preparamos o TRECO (Treinamento de Coordenadores) visando também a avaliação do trabalho até então desenvolvido em preparação à primeira Assembleia Diocesana de Jovens que aconteceria em março de 82. Aquela Assembleia definiu um Primeiro Plano Diocesano de Pastoral da Juventude, para dois anos, tendo como prioridades: criação e acompanhamento de pequenos grupos de base; capacitação de coordenadores e formação.


A capacitação de coordenadores naquele ano, em nível diocesano, se deu através de dois cursos. O primeiro deles assessorado por Hilário Dick, então assessor nacional da PJ.Aqui gostaria de abrir um parêntese para relatar uma "situação desesperadora" e uma experiência desafiadora enfrentada pela guerreira ECD (Equipe Central Diocesana). Curso agendado, assessor contactado, coordenadores convidados, Pe. Floris viaja (não saberia dizer ao certo, mas creio que por uma questão pastoral) e enquanto se encontra fora ocorreu-lhe um problema de saúde. Comunicou-nos que não voltaria até a data do evento e que deveríamos assumir a preparação e realização do mesmo. Desespero total! O curso aconteceu sob a luz do Espírito Santo.


Outro acontecimento marcante para mim, não sei se trágico, cômico, pitoresco, constrangedor...ocorreu numa das nossas famosas Caminhadas Jovens. É que, certamente por falta de outra opção, eu assumia nos cursos, encontros, assembleias, caminhadas...a animação dos cantos. Desta feita, em cima de um caminhão de som, com microfone em punho "puxei" o canto: A verdade vos libertará, libeeeertará...de maneira tão desafinada que foi a maior "gafe". Imagine 5 mil jovens reunidos mais a população de São Luis quase toda e eu passando por aquele vexame. Tudo pelo Reino.


Não poderia deixar de mencionar aqui a idealização, criação, redação, distribuição do Força Jovem. Com o objetivo de ser instrumento de comunicação, intercâmbio, formação...para a juventude diocesana e até nacional ele surgiu. Uma equipe de jovens de Iporá (todos meus irmãos a integrava) assumiu esse trabalho. Experiência enriquecedora, mas exigia muito de nós. Chegávamos, em muitos momentos, a pensar em "deitar com a carga". Trabalhávamos com recursos mínimos - vale lembrar que não existia celulares, computadores e, claro, internet. Nosso equipamento mais avançado era uma máquina de datilografia (velha). O trabalho era artesanal e entrava madrugada a dentro. Das muitas memórias, destaco o fato de eu redigir, corrigir textos, ilustrar...amamentando uma filha e embalando outra no carrinho com o pé.


Enfim, posso afirmar com toda segurança que sou uma consequência da PJ. Se não tivesse tido essa "escola" certamente seria outra pessoa. Não ouso dizer se melhor ou pior mas, diferente, com certeza. A verdade é que a PJ teve uma influência muito grande em minha vida (até contribuiu para o término de um namoro de sete anos e meio, creiam). Colaborou, princialmente, para a formação do senso crítico, do desejo de ser protagonista da história e de colaborar na construção do Reino.


Confesso que, não raras vezes, tenho me sentido um peixe fora d'agua na igreja. Percebo uma forte tendência para uma ação mais voltada para o "combate espiritual" com ênfase no silêncio, na oração, na meditação, na adoração, na espiritualidade...bem ao gosto do capitalismo.Oxalá tenhamos a coerência do Papa Francisco - coloque a teologia em tom menor para que a libertação ressoe em tom maior: consolação para os oprimidos e apelo às consciências dos poderosos. Que tenhamos a consciência de João Batista e que o lema dele seja o nosso: "é necessário que Ele cresça e eu diminua" (Jo 3,30).
E assim vamos nós. Afinal, sabemos que "estamos unidos por um laço eterno". Então, cantemos,mesmo que desafinadamente: A verdade vos libertará, libeeeeertará...
Até breve!

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Uma carta para Pedro do Luis Duarte: Querido Pedro Calsadáliga,

 

Querido Pedro Calsadáliga,

Já comecei esse escrito várias vezes e não conseguia terminar. Faltam palavras, sobram lágrimas. Esse é o primeiro, de outros escritos que virão. Ontem reli seus escritos para os/as jovens das Pastorais da Juventude quando escrevia a coluna “Mística” no Jornal Juventude. Em um desses escritos você diz sete traços marcantes da vida de Jesus. Os traços da vida Dele que mais marcam a tua vida. Sem dúvida, os traços que indica do Cristo são os traços que marcam sua vida. 
Mas, inspirado nesse escrito, quero escrever sete traços de tua vida que tocam a minha. Sete traços que me tocam e me convocam.

1. *Fidelidade* – Sua vida comunica fidelidade. Fidelidade aos/às pobres e ao Evangelho. Fidelidade ao Senhor e ao Reino. Fidelidade mesmo quando isso significou perseguição. Você foi fiel ao Evangelho e aos/às pobres mesmo quando a estrutura eclesiástica te questionava. Você foi fiel mesmo nas ameaças de morte. 


2. *Martírio* – Não é possível falar da memória dos/as Mártires sem falar de ti e do como sua vida ajudou-nos a alimentar essa mística martirial.  A memória dos/as mártires seguirá e nos seguiremos. Vamos multiplicar Romarias dos/as Mártires. Quisera eu ter um pouco da mesma paixão e do mesmo compromisso que moveu os/as mártires e a ti. 

3. *Profecia* – Você chegou à região de São Félix e encarnou-se na vida desse povo. Tal qual Deus se encarnou na vida. E sua vida, suas ações e suas palavras foram profecia. Sua vida sempre foi pedra de tropeço para os ricos e poderosos. Sua vida sempre incomodou, tanto os governantes como algumas autoridades eclesiais. Sua profecia não era apenas na fala, mas sobretudo nas tuas ações, na tua encarnação na vida do povo. Até tua partida se faz profecia. Vives tua Páscoa no dia em que o Brasil se entristece por 100 mil vidas ceifadas pela pandemia. Até em tua partida, você se une aos/às obres que também estão partindo por conta dessa pandemia e do desgoverno que preside esse país. 

4. *Amor* – Na poesia eternizada de sua vida e seus escritos você escreveu: “Ao final do caminho me dirão: - E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes” Hoje nesse tempo pascal, fico pensando nesses milhões de nomes que saem de seu coração. Fico pensando nos pobres a quem você serviu. Fico pensando nas prostituas que você acolheu sem julgar. Nos indígenas que defendeu. Nos sem voz de quem tu foi voz. Tua Páscoa é sentida por demais, sobretudo por aqueles/as que tiveram a dignidade de suas vidas respeitadas por conta de tua vida. Fico pensando constantemente nos pobres da Prelazia. Penso nesses/a que você amou. Fico pensando nos/as camponeses/as. Fico pensando nos/as índios/as. Fico pensando no Cristo que você enxergou no rosto de cada pessoa com quem se encontrou. Queria ser capaz de amar assim. 

5. *Luta* - Jamais poderão falar de sua história sem dizer de sua luta pela vida e dignidade dos/as pobres, camponeses/as, indígenas e sem voz. Sua vida muito representa para as lutas tão necessárias nesses tempos. Sua memória seguirá nos inspirando. 


6. *Poesia* – Pedro tu és poeta. Tu sabes. E como poucos, tu descrevestes a Palavra do Deus Amor, Causa e Vida. Jamais falaremos de Pedro sem falarmos de tuas poesias que seguirão animando nossos encontros, abraços e lutas. 

7. *Esperança* – Pedro. Tu és e seguirá sendo o profeta da esperança. Mesmo que não fales nada, tua vida e tua presença e agora tua memória comunicam esperança. Irradiam esperança. Provocam esperança. Convocam à esperança. Motivam à esperança. E sua vida, querido Pedro, devolveu esperança a tanta gente. Sua vida foi como a vida D’Ele, o Mártir Jesus. Você, Nele, com Ele e por Ele, devolveu esperança ao povo. Nele, com Ele e por Ele você transformou muitos sertões em açudes. Faltam alguns sertões, mas essa tarefa agora cabe a nós. 

Olho para esses sete traços e me sinto tão pequeno diante de ti e diante Dele. E por isso, peço a ti que me ajude e que ajude-nos a também sermos homens e mulheres de profunda FIDELIDADE, de radical AMOR, comprometidos/as com a LUTA pela vida, POETAS e PROFETAS do Reino, alimentados/as pela MEMÓRIA MARTIRIAL, comprometidos/as com as causas dos/as Mártires e por isso mesmo pessoas de ESPERANÇA e que a devolvem aos/às pobres e sofredores/as. Obrigado por tanto Pedro. Ajude-me a ser capaz de amar um pouco como você amou e ama.  Continue a olhar pelos/as pobres de nossa Casa Comum. 
Dê um abraço no Hilário Dick, por favor. 
Abraços pascais, 
Luis Duarte

domingo, 9 de agosto de 2020

Carlos Rodrigues Brandão sobre Pedro Casaldáliga: Pedro

 

Pedro Casaldáliga partiu hoje, no dia em que chegamos a cem mil mortos pela COVID19, e a Amazônia arde em fogo.
 
Por toda a parte, entre a televisão, os escritos e as mensagens por internet, imagino que os fatos e feitos marcantes da vida de Pedro estarão sendo lembrados e narrados aqui no Brasil, na Catalunha e por toda a parte.
 
Um pouco antes desses tempos de quarentena eu lia na Rosa dos Ventos um dos seus diários publicado como um livro:  quando os dias fazem pensar.
 
Tal como aconteceu na partida de outras pessoas queridas, como Paulo Freire, Rubem Alves, Tomás Baldoino e Jether Ramalho, quero partilhar com pessoas amigas algo mais simples, mais corriqueiro e mais próximo da pessoa do cotidiano, do que do personagem da história.
 
Tenho dele algumas cartas, três ou quatro. Em uma delas, escrita a mão, ele fala da venda da “última propriedade da prelazia”. Uma pequena casa em São Felix do Araguaia, pintada de verde, simples como a de qualquer morador de “média classe média”, onde eu havia estado algum tempo antes.
 
Estive lá duas vezes. Uma delas com José de Souza Martins.  Era um encontro envolvendo do bispo-prelado a índios, e fomos lá para pensarmos algo sobre uma pesquisa nos moldes com que antes trabalhamos na Diocese de Goiás. Éramos muita gente, e dormimos no chão sobre colchonetes, em uma igreja de São Félix. Pedro dormiu ao lado das outras pessoas, no meio círculo que formamos lá dentro.
 
Costumava usar calça jeans, ou semelhantes, e quase sempre calçava uma conga, sua companheira de longas caminhadas a pé. Creio que o vi paramentado apenas uma vez.
 
Nossa correspondência era mais sobre poesia do que sobre política e pastoral. Menos do que eu, eu mesclava uma coisa com a outra, e saberá quem conheça os seus poemas, que eles eram também gritos, brados entre a revolta, a luta e a esperança.
 
Certa feita escrevi uma série de pequenos poemas dedicados a ele. O nome da série era: Os p (r) o (f) e t a s, e assim os dediquei: “A Pedro, profeta, poeta”.
 
Em tempos de ditadura militar os “bispos do Centro-Oeste” fizeram um duro documento de crítica ao (des)governo de então. Dom Tomás Baldoino foi encarregado de visitar os prelados entre Goiás e o Pará, para colher as assinaturas. Convidou-me para viajar com ele, entre a Cidade de Goiás e Marabá, em seu pequeno avião monomotor. Fomos e colhemos a assinatura de bispos em Porto Nacional, Conceição do Araguaia, Marabá, e a de Pedro, em São Felix do Araguaia
 
Na viagem de volta, depois que o avião foi abastecido de combustível em Santa Terezinha, perguntei a Dom Tomás se não poderíamos descer no aeroporto improvisado da aldeia dos índios Tapirapé, na Prelazia de Dom Pedro. Tomás gostou da ideia. Afina, havíamos cumprido a missão e tínhamos todo o dia para retornar a Goiás.
 
No momento do pouso na pista estreita e de terra, um dos pneus do avião furou. Não fosse a perícia do bispo-piloto e poderia haver sido um grave acidente. Até quando veio de Anápolis uma peça que substituiu a que ficou amassada no quase-acidente, permanecemos quatro dias entre a aldeia Tapirapé e São Félix. Padre Jenthel,  que meses mais tarde seria “expulso do Brasil” pelos militares, veio nos buscar de “voadeira” e descemos com ela até São Félix.
 
Estive de novo com Pedro, e uma vez mais aprendi deste homem pequenino e magro, o que na prática da vida de todos os dias os cristãos chamam de: “viver o evangelho”. Mais do que na sua poesia, em seus diários este “viver” está posto por escrito singelamente.
 
Pedro não apenas “estava com o povo e lutava por ele”.  Ele vivia com e como ele, sem alarde algum. Como se aquela fosse a mais simples e natural maneira de se ser. E acaso não é?
 
Anos mais tarde (para surpresa minha, que nada tive a ver com o “andamento do processo”), minha universidade, a UNICAMP (Laica e profana), concedeu a Pedro Casaldáliga o título de Dr. Honoris Causa.
 
Ao contrário de outros “honoris causa” que preparam para ocasiões assim solenes discursos, Pedro falou de improviso quando lhe foi dada a palavra.  E dedicou o seu título ao “Rio Araguaia”. E proclamou no silêncio do auditório lotado: “Doutor Araguaia!”
 
Quando a cerimônia estava para ser encerrada, ele subitamente convocou as pessoas presentes a que o acompanhassem, saindo da sala para um estacionamento ao ar livre. Pediu que fizéssemos um grande círculo e nos déssemos as mãos.
 
Começamos a rodar lentamente (algumas autoridades sumamente envergonhadas). E ao invés de “puxar algum canto sacro”, ele começou a cantar, e em seguida o acompanhamos:
 
Caminhando e cantando
E seguindo a canção.
Somos todos irmãos
Braços dados os não...
 
E assim seguimos, Pedro, irmão.
 
Carlos Rodrigues Brandão
8 de agosto de 2020

sábado, 8 de agosto de 2020

Pedro, o profeta da vida transformada em poesia - Marcelo Barros


“Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé” (II Tm 4, 7). 
Para quem conheceu de perto e teve a graça de conviver com Pedro Casaldáliga, não será fácil ver o mundo sem ele. Afinal, desde que, como padre ainda jovem, chegou em São Félix do Araguaia, em outubro de 1971, penso que nunca ninguém o encontrou sem de alguma forma ficar marcado. No contato com ele, as pessoas abertas ao apelo divino da justiça e da paz receberam sempre alento e força. Aqueles que, por interesses pessoais ou por alienação da vida, não aceitaram o anúncio do reino, o rejeitaram. Alguns o odiavam. Diante dele e de sua palavra e suas posturas proféticas, era quase impossível ficar indiferente. 
 
A quem, na busca espiritual, teve a graça de encontrá-lo ao menos uma vez e mais ainda para muitos de nós que tivemos o privilégio de conviver com ele ou acompanhá-lo na missão, Pedro sempre  testemunhou o amor divino como força transformadora das pessoas e da sociedade. 
Neste momento de sua Páscoa definitiva, muitos irmãos e irmãs vão lembrar coisas bonitas que viveram com ele. Outros tecerão elogios a seus poemas e a seus escritos que “sempre dão o que pensar”, como ele intitulou um dos volumes de seu diário nos anos 80.
 
 Pode ser que, depois de alguns dias, eu consiga escrever mais alguma coisa. Hoje, a emoção ainda não me deixa escrever, sem misturar as letras com as lágrimas da saudade, da gratidão imensa e da ação de graças a Deus por ter, durante anos decisivos da minha vida, podido ter nele um irmão mais velho, um conselheiro espiritual e um mestre de vida. 
 
Junto com Dom Tomás, foi ele que fez a mim, a Filipe Leddet e a Pedro Recroix, retomar o projeto de um mosteiro ecumênico e inserido no meio dos pobres quando pensávamos que, na Igreja Católica, não conseguiríamos. De fato, no começo dos anos 2000, aquele projeto tinha mesmo se tornado bem mais difícil. No entanto, em 1984, Pedro e Tomás nos aconselharam a recomeçar de forma nova o estilo de vida monástica inserida que os monges franceses começaram em 1961 em Curitiba. A partir dali, o mosteiro da Anunciação do Senhor foi um sinal ecumênico e pascal para as Igrejas do Brasil e para os movimentos sociais.  Como gostaria de encontrar o poema de Pedro sobre os monges de pés descalços cujo mosteiro é o mundo. 
 
Nesta vigília de oração, tento me lembrar o que aprendi com Pedro nos anos em que convivi com ele na Pastoral da Terra, quando ia assessorar a prelazia ou quando algumas vezes viajamos juntos e fizemos retiros em comum. É uma riqueza que não dá para resumir e que é bom recordar porque não é uma herança apenas para mim e sim para toda a Igreja e a caminhada a partir de uma espiritualidade libertadora.
 
Alguns elementos desta herança espiritual: 
 
1 - Pedro nos ensinou e nos propôs a viver a fé, descentrados de nós mesmos e da própria Igreja. Ele vivia uma adesão contínua e total a Jesus Ressuscitado no estilo de uma Santa Teresa de Ávila, mas manifestando-o presente nas pessoas mais pobres, na opção pela justiça e pela libertação de todos/as.  Pedro expressava isso ao dizer: Absoluto mesmo só Deus e a fome do povo.
 
2 – Desde o começo do seu ministério, Pedro insistia: Igreja é sempre e principalmente Igreja local. Ah, se Pedro pudesse ter estado no Sínodo da Amazônia e nos revelado como já nos anos 70, ele propunha “amazonizar” a Igreja. 
 
3 – Pedro nos passou o amor apaixonado aos povos indígenas e este amor se manifestava em todo o seu estilo de vida, até o fato de querer ser enterrado no cemitério Karajá às margens do Araguaia.
 Não tenho como neste momento não retomar com carinho filial um dos seus poemas que fala da morte, mas também da ressurreição como rota de vida: 

Enterrem-me no rio,

Perto de uma garça branca.

O resto já será meu.


E aquela correnteza franca


Que eu, passando, pedia,

Será pátria recuperada.


O êxito do fracasso.

A graça da chegada.



A sombra-em-cruz da vida

Sob este sol de verdade

Tem a exata medida


Da paz de um homem morto...


E o tempo é eternidade

E toda a rota é porto!

Pedro Casaldáliga: Oração: meu corpo como comida







 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

BEM-VIVER: utopia necessária - Org. Luis Duarte

 


O Bem Viver, segundo os mais de cem participantes do Seminário Bem Viver – Tecendo Redes de Proteção à vida, é um modo diferente de  viver (12) e não é viver bem. Viver bem reafirma os princípios capitalistas que precisam ser erradicados (22). O bem viver, herança dos povos indígenas (22) resgata o modelo de vivência comunitária (8) e reafirma o direito à vida plena (12), abundante e feliz para todos/as. 

 

Portanto, o bem viver representa um novo modelo de sociedade (25) que precisa ser realidade. Nesse novo modelo de sociedade há o fim do capitalismo e o advento de uma economia ecológica, solidária e na qual a vida é o primado (21). Trata-se então de uma organização social, política, econômica e religiosa que parta do princípio da dignidade, que reconheçam e promovam para as pessoas a vivência efetiva dos seus direitos (5). Nessa nova sociedade as relações entre as pessoas são marcadas por acolhida, valorização, respeito e dignidade (20). Nessa nova sociedade as pessoas respeitam a si (17), os/as outros/as (20) e a Natureza (23). 

 

Construir essa nova sociedade é um desafio, mas também uma utopia (6) urgente e necessária. Como tal, é um processo de decoloniedade (6) e uma construção coletiva (10).

 

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Desafios para criar e fortalecer redes de proteção à VIDA - organizador Luis Duarte

Quando se tratar de criar Redes de Proteção à vida muitos desafios são postos às pessoas, grupos e organizações que assumem essa causa. Abaixo, apresenta-se a síntese dos principais desafios elencados por mais de 100 participantes do Seminário do Bem Viver – Tecer Redes de Proteção a vida.

Um dos grandes desafios é garantir processos de estudo e formação sobre diferentes culturas; realidades dos povos; mecanismos para efetivação de direitos; linguagem a ser utilizada com os diferentes interlocutores; metodologia para o trabalho; e diálogo intergeracional, interreligioso e intercultural (22). Associado ao desafio da formação está a formação das pessoas (15) que trabalham com Redes de Proteção à vida.

Há também o desafio de ampliar a participação das pessoas e da sociedade tanto na construção de redes, quanto no acompanhamento ou no controle social. Falta

m pessoas dispostas para o trabalho em Redes de Proteção à vida (11).

Superar e erradicar o individualismo (24); o consumismo (7); o conceitualismo (1);  a despolitização (2); a metritocracia (1); a criminalização dos movimentos sociais (3); o egoísmo (4); o clericalismo (1); o messianismo (1); o imediatismo (3); o vitimismo (1); o derrotismo (1); a polarização (4); o patriarcado (2); o racismo(1); o machismo (2); o conservadorismo (4); o tradicionalismo (1); o comodismo(2); o (neo)colonialismo (5); o punitivismo (1); e o capitalismo (14) é uma tarefa urgente. E esta não se efetivará sem que haja um enfrentamento ao atual (des)governo (fascista, racista, autoritário e genocida) e seu projeto de morte (18).

Nesse sentido é preciso garantir processos de construção, efetivação, monitoramento, acompanhamento e execução de Políticas Públicas (34) que garantam os direitos dos povos e a democratização.

Não haverá outro mundo possível sem a superação da violência (18) que fere e ceifa a vida de negros/as, jovens, mulheres, LGBTQIA+, povo do campo, indígenas, pobres e das demais minorias. Fica mais que evidente a necessidade de defender a vida sobretudo daqueles que hoje a têm ameaçada seja pela negação de direitos seja pelo próprio sistema social ou pela retirada de direitos (116). É preciso ainda garantir que haja justiça social (2) e que se repense a relação da humanidade com a natureza (4).

Para construir Redes de Proteção à vida é preciso resgatar a coletividade (20) em vista de projetos que alterem as estruturas sociais, firmem parcerias e reduza o ativismo e sobrecarga. Resgatar a coletividade passa também por unir as diferentes Redes, trocando saberes e experiências exitosas; fortalecendo nossa capacidade de diálogo e de acolhida. E coletivamente é preciso aprofundar o planejamento da ação, para que a mesma seja mais eficaz e gere processos mais emancipatórios (5). Coletivamente as instituições e Redes poderão encontrar caminhos para fortalecer a Educação Libertadora e libertária (4) e garantir a sustentabilidade da ação (4)

Obviamente os desafios e impactos da pandemia e do isolamento social (4) afetam muito. E todo o cenário de morte no país causa desesperança. Mas, é preciso manter viva a esperança (10) para assim fortalecer e assumir a cultura e o modo de ser, estar e viver do Bem Viver (6). Lembrando sempre que garantir o bem viver é cuidar da memória (5) pessoal, coletiva e social.

Os desafios aqui citados são alguns de uma gama maior e complexa que se apresenta. Mas e apesar deles, a tarefa de tecer de proteção à vida é urgente e necessária.

* Os números que aparecem nos parênteses se referem a quantidade de pessoas que disseram sobre o mesmo tema.

** A síntese do Seminário Bem Viver - Tecendo Redes de Proteção à vida realizado de maio a setembro de 2020, organizado pela Rede Caminho de Esperança.