Pedro Casaldáliga partiu hoje, no dia em que chegamos a cem mil mortos pela COVID19, e a Amazônia arde em fogo.
Por
toda a parte, entre a televisão, os escritos e as mensagens por
internet, imagino que os fatos e feitos marcantes da vida de Pedro
estarão sendo lembrados e narrados aqui no Brasil, na Catalunha e por
toda a parte.
Um pouco antes desses tempos de
quarentena eu lia na Rosa dos Ventos um dos seus diários publicado como
um livro: quando os dias fazem pensar.
Tal como
aconteceu na partida de outras pessoas queridas, como Paulo Freire,
Rubem Alves, Tomás Baldoino e Jether Ramalho, quero partilhar com
pessoas amigas algo mais simples, mais corriqueiro e mais próximo da
pessoa do cotidiano, do que do personagem da história.
Tenho
dele algumas cartas, três ou quatro. Em uma delas, escrita a mão, ele
fala da venda da “última propriedade da prelazia”. Uma pequena casa em
São Felix do Araguaia, pintada de verde, simples como a de qualquer
morador de “média classe média”, onde eu havia estado algum tempo antes.
Estive
lá duas vezes. Uma delas com José de Souza Martins. Era um encontro
envolvendo do bispo-prelado a índios, e fomos lá para pensarmos algo
sobre uma pesquisa nos moldes com que antes trabalhamos na Diocese de
Goiás. Éramos muita gente, e dormimos no chão sobre colchonetes, em uma
igreja de São Félix. Pedro dormiu ao lado das outras pessoas, no meio
círculo que formamos lá dentro.
Costumava usar
calça jeans, ou semelhantes, e quase sempre calçava uma conga, sua
companheira de longas caminhadas a pé. Creio que o vi paramentado apenas
uma vez.
Nossa correspondência era mais sobre
poesia do que sobre política e pastoral. Menos do que eu, eu mesclava
uma coisa com a outra, e saberá quem conheça os seus poemas, que eles
eram também gritos, brados entre a revolta, a luta e a esperança.
Certa
feita escrevi uma série de pequenos poemas dedicados a ele. O nome da
série era: Os p (r) o (f) e t a s, e assim os dediquei: “A Pedro,
profeta, poeta”.
Em tempos de ditadura militar os
“bispos do Centro-Oeste” fizeram um duro documento de crítica ao
(des)governo de então. Dom Tomás Baldoino foi encarregado de visitar os
prelados entre Goiás e o Pará, para colher as assinaturas. Convidou-me
para viajar com ele, entre a Cidade de Goiás e Marabá, em seu pequeno
avião monomotor. Fomos e colhemos a assinatura de bispos em Porto
Nacional, Conceição do Araguaia, Marabá, e a de Pedro, em São Felix do
Araguaia
Na viagem de volta, depois que o avião foi
abastecido de combustível em Santa Terezinha, perguntei a Dom Tomás se
não poderíamos descer no aeroporto improvisado da aldeia dos índios
Tapirapé, na Prelazia de Dom Pedro. Tomás gostou da ideia. Afina,
havíamos cumprido a missão e tínhamos todo o dia para retornar a Goiás.
No
momento do pouso na pista estreita e de terra, um dos pneus do avião
furou. Não fosse a perícia do bispo-piloto e poderia haver sido um grave
acidente. Até quando veio de Anápolis uma peça que substituiu a que
ficou amassada no quase-acidente, permanecemos quatro dias entre a
aldeia Tapirapé e São Félix. Padre Jenthel, que meses mais tarde seria
“expulso do Brasil” pelos militares, veio nos buscar de “voadeira” e
descemos com ela até São Félix.
Estive de novo com
Pedro, e uma vez mais aprendi deste homem pequenino e magro, o que na
prática da vida de todos os dias os cristãos chamam de: “viver o
evangelho”. Mais do que na sua poesia, em seus diários este “viver” está
posto por escrito singelamente.
Pedro não apenas
“estava com o povo e lutava por ele”. Ele vivia com e como ele, sem
alarde algum. Como se aquela fosse a mais simples e natural maneira de
se ser. E acaso não é?
Anos mais tarde (para
surpresa minha, que nada tive a ver com o “andamento do processo”),
minha universidade, a UNICAMP (Laica e profana), concedeu a Pedro
Casaldáliga o título de Dr. Honoris Causa.
Ao
contrário de outros “honoris causa” que preparam para ocasiões assim
solenes discursos, Pedro falou de improviso quando lhe foi dada a
palavra. E dedicou o seu título ao “Rio Araguaia”. E proclamou no
silêncio do auditório lotado: “Doutor Araguaia!”
Quando
a cerimônia estava para ser encerrada, ele subitamente convocou as
pessoas presentes a que o acompanhassem, saindo da sala para um
estacionamento ao ar livre. Pediu que fizéssemos um grande círculo e nos
déssemos as mãos.
Começamos a rodar lentamente
(algumas autoridades sumamente envergonhadas). E ao invés de “puxar
algum canto sacro”, ele começou a cantar, e em seguida o acompanhamos:
Caminhando e cantando
E seguindo a canção.
Somos todos irmãos
Braços dados os não...
E assim seguimos, Pedro, irmão.
Carlos Rodrigues Brandão
8 de agosto de 2020
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