domingo, 9 de agosto de 2020

Carlos Rodrigues Brandão sobre Pedro Casaldáliga: Pedro

 

Pedro Casaldáliga partiu hoje, no dia em que chegamos a cem mil mortos pela COVID19, e a Amazônia arde em fogo.
 
Por toda a parte, entre a televisão, os escritos e as mensagens por internet, imagino que os fatos e feitos marcantes da vida de Pedro estarão sendo lembrados e narrados aqui no Brasil, na Catalunha e por toda a parte.
 
Um pouco antes desses tempos de quarentena eu lia na Rosa dos Ventos um dos seus diários publicado como um livro:  quando os dias fazem pensar.
 
Tal como aconteceu na partida de outras pessoas queridas, como Paulo Freire, Rubem Alves, Tomás Baldoino e Jether Ramalho, quero partilhar com pessoas amigas algo mais simples, mais corriqueiro e mais próximo da pessoa do cotidiano, do que do personagem da história.
 
Tenho dele algumas cartas, três ou quatro. Em uma delas, escrita a mão, ele fala da venda da “última propriedade da prelazia”. Uma pequena casa em São Felix do Araguaia, pintada de verde, simples como a de qualquer morador de “média classe média”, onde eu havia estado algum tempo antes.
 
Estive lá duas vezes. Uma delas com José de Souza Martins.  Era um encontro envolvendo do bispo-prelado a índios, e fomos lá para pensarmos algo sobre uma pesquisa nos moldes com que antes trabalhamos na Diocese de Goiás. Éramos muita gente, e dormimos no chão sobre colchonetes, em uma igreja de São Félix. Pedro dormiu ao lado das outras pessoas, no meio círculo que formamos lá dentro.
 
Costumava usar calça jeans, ou semelhantes, e quase sempre calçava uma conga, sua companheira de longas caminhadas a pé. Creio que o vi paramentado apenas uma vez.
 
Nossa correspondência era mais sobre poesia do que sobre política e pastoral. Menos do que eu, eu mesclava uma coisa com a outra, e saberá quem conheça os seus poemas, que eles eram também gritos, brados entre a revolta, a luta e a esperança.
 
Certa feita escrevi uma série de pequenos poemas dedicados a ele. O nome da série era: Os p (r) o (f) e t a s, e assim os dediquei: “A Pedro, profeta, poeta”.
 
Em tempos de ditadura militar os “bispos do Centro-Oeste” fizeram um duro documento de crítica ao (des)governo de então. Dom Tomás Baldoino foi encarregado de visitar os prelados entre Goiás e o Pará, para colher as assinaturas. Convidou-me para viajar com ele, entre a Cidade de Goiás e Marabá, em seu pequeno avião monomotor. Fomos e colhemos a assinatura de bispos em Porto Nacional, Conceição do Araguaia, Marabá, e a de Pedro, em São Felix do Araguaia
 
Na viagem de volta, depois que o avião foi abastecido de combustível em Santa Terezinha, perguntei a Dom Tomás se não poderíamos descer no aeroporto improvisado da aldeia dos índios Tapirapé, na Prelazia de Dom Pedro. Tomás gostou da ideia. Afina, havíamos cumprido a missão e tínhamos todo o dia para retornar a Goiás.
 
No momento do pouso na pista estreita e de terra, um dos pneus do avião furou. Não fosse a perícia do bispo-piloto e poderia haver sido um grave acidente. Até quando veio de Anápolis uma peça que substituiu a que ficou amassada no quase-acidente, permanecemos quatro dias entre a aldeia Tapirapé e São Félix. Padre Jenthel,  que meses mais tarde seria “expulso do Brasil” pelos militares, veio nos buscar de “voadeira” e descemos com ela até São Félix.
 
Estive de novo com Pedro, e uma vez mais aprendi deste homem pequenino e magro, o que na prática da vida de todos os dias os cristãos chamam de: “viver o evangelho”. Mais do que na sua poesia, em seus diários este “viver” está posto por escrito singelamente.
 
Pedro não apenas “estava com o povo e lutava por ele”.  Ele vivia com e como ele, sem alarde algum. Como se aquela fosse a mais simples e natural maneira de se ser. E acaso não é?
 
Anos mais tarde (para surpresa minha, que nada tive a ver com o “andamento do processo”), minha universidade, a UNICAMP (Laica e profana), concedeu a Pedro Casaldáliga o título de Dr. Honoris Causa.
 
Ao contrário de outros “honoris causa” que preparam para ocasiões assim solenes discursos, Pedro falou de improviso quando lhe foi dada a palavra.  E dedicou o seu título ao “Rio Araguaia”. E proclamou no silêncio do auditório lotado: “Doutor Araguaia!”
 
Quando a cerimônia estava para ser encerrada, ele subitamente convocou as pessoas presentes a que o acompanhassem, saindo da sala para um estacionamento ao ar livre. Pediu que fizéssemos um grande círculo e nos déssemos as mãos.
 
Começamos a rodar lentamente (algumas autoridades sumamente envergonhadas). E ao invés de “puxar algum canto sacro”, ele começou a cantar, e em seguida o acompanhamos:
 
Caminhando e cantando
E seguindo a canção.
Somos todos irmãos
Braços dados os não...
 
E assim seguimos, Pedro, irmão.
 
Carlos Rodrigues Brandão
8 de agosto de 2020

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