sexta-feira, 6 de março de 2020

Memória 1 – A despedida - Luis Duarte




Amado Hilário Dick,

Já comecei a escrever essas linhas tantas vezes, mas está sofrido demais. Nada que escrevo é suficiente e as palavras fogem de mim. Mas, preciso escrever. Aliás, foi você que me ensinou a escrever. Sei que haverá muitos outros escritos e memórias.

Quero dizer que dói demais. E que desde que soube de sua partida tem doido muito. Sim, eu sei que é Páscoa. Mas, doí e doí muito. Não tenho dúvidas da bonita festa que se fez ai no céu com tua chegada. Todas as juventudes do céu te receberam em vibrante acolhida. Os/as jovens assassinados por esse sistema que mata, os/as jovens negros/as mortos pelo racismo, as jovens mulheres que são vítimas do machismo e feminicídio, os/as jovens indígenas mortos em nome de progresso, os/as jovens LGBTQ+s mortos porque a sociedade ainda não é capaz de amar e todos os/as demais jovens mortos pelas muitas formas de violência te acolheram em um abraço gigantesco. É que estavam agradecendo sua vida doada pelas juventudes dessa Pátria Grande. E junto deles Gisley, Lourival, Julciene, Walderes, Deusdete, Albano, Raimundo, Horácio Penengo, Dom José Mauro, Jesús André Vela e Floris te esperaram em uma bonita acolhida para agradecer a vida doada pelos/as jovens. Eles com certeza se colocaram a escutar memórias que tu tinha pra partilhar. Sei que já sabes mas, quero partilhar algumas memórias desses dois dias de despedida.

Eu recebi a notícia de sua Páscoa no meio da gurizada. Estava em sala de aula. Tremi. Chorei. Janete, Silon Orival me comunicaram. Liguei para Joaquim pra ele falar com Raquel. Liguei pra Carmem e chorei. Chorei com Rezende. Falei com Maicon e Jean. Silon e Janete me escreveram. Chorei ao falar com tanta gente. A notícia de sua páscoa se espalhou e foram chegando, de incontáveis lugares desse Continente, mensagens e manifestações de gratidão por aquilo que tua vida foi, significou e significa na vida de tanta gente. Você nem imagina a quantidade de mensagens que ainda continuar a chegar.

Da escola, Marionei me buscou. Rodrigo me abraçou. Peguei a estrada. Encontrei com a Gabi, e olhando o horizonte falamos de tua vida. E seguimos pra Erechim. De lá, com Jean, Maicon, Rici, Rocheli e Gabi fomos pra São Leopoldo. Na estrada entre choros e partilhas, gratidão e memórias por tua vida.

Ao chegarmos de madrugada no velório, João Francisco esperava. Felipe fazia vigília. E ficamos em silêncio orante e em choro muito tempo sozinhos contigo. À medida que o dia nascia, as pessoas chegavam ali na casa de saúde.  Muitas pessoas iam, choravam, rezavam, bendiziam o bem que você fez.

Às noves rezamos a Eucaristia com a comunidade dos jesuítas idosos e doentes. Eucaristia que tu ia cotidianamente. Igreja pequena pra tanta gente reunida e pra tanto afeto pra você.  Roque chorou. Lúcia e Marli e outras tuas sobrinhas choraram profundamente. E logo, outros/as sobrinhos/as foram chegando. Um padre bem velhinho sempre ia no caixão jogar água benta em você. Sebaldi chorou e sentiu muito. Hugo Bersh ficou o tempo todo contigo. Me impressionou muito o fato de algumas pessoas irem pra se despedir. Por exemplo, uma jovem fez Animadores contigo foi lá agradecer o que sua vida mudou na vida dela. Ela agradeceu, chorou, rezou e seguiu. 

Depois dessa missa partimos pro Santuário para continuar o velório e depois celebrar a Eucaristia. A cada minuto mais gente ia chegando. E nesse momento Quel chegou. Vários irmãos Maristas e alguns lassalistas foram lá se despedir de você. Isso sem falar nas incontáveis gerações de PJs e de várias pessoas da universidade. Você nem faz ideia da quantidade de pessoas. Seus irmãos chegaram. Ilse chegou. Se colocou perto do caixão. Chorou. Com certeza, lembraram das Eucaristias que vocês rezavam quando eram crianças.

A Eucaristia que celebramos antes de plantarmos você na terra foi como você pediu. Quem te enterrou foram os/as jovens e assessores/as. Os/as jovens da PJ do RS motivaram um ofício. Cantaram, leram, proclamaram a Palavra. Cantamos mantras que tu gostava e ouvimos partilhas de vida do teu significado na vida de tanta gente. Foi impressionante. Beto cantou “uma corrente mais forte que o ódio e a morte. Nós sabemos é o amor” pra você. Depois ao cantarmos “Sonhos e Pandorgas” a igreja vibrou. É que na tua missa de despedida havia, seguramente, todas as gerações das Pastorais da Juventude do Rio Grande do Sul.  Foi um grande encontro, cheio de lágrimas por tua partida, mas cheio de memórias e alegrias.  Felipe, teu sobrinho, partilhou da gratidão de ter você em sua família. Uma irmã falou das tuas marcas na vida religiosa. Pati provocou a gente a pensar no que significava o silêncio que fazíamos: seus ensinamentos gritando em nós. Um irmão marista disse publicamente que você mudou a congregação e ensinou-os a amar mais fiel e radicalmente a juventude. Essas memórias deram início à Eucaristia.

Vários padres, jesuítas, religiosos e diocesanos de vários lugares, estavam ali. Foi uma entrada lenta. Odelson, teu companheiro de noviciado caminhava com uma bengala. Ivo Follman veio de SP para se despedir de você. Sei que a presença dele te alegrou muito. Jean, Maicon e Edinho, discípulos teus no amor e acompanhamento aos/às jovens, foram os últimos a entrar. Maicon e Edinho presidiram. Falaram de tua fidelidade e das vezes que você foi incompreendido, como os profetas o são. Falaram de tua marca. De fato, nós comemos e bebemos da utopia.

Silon falou do quanto você incompreendido e de como sua vida deu voz aos pobres. Ele falou da Janete, das demais empregadas e das enfermeiras. Aliás, elas choraram muito ao se despedir de você. Silon falou que você ensinou ele e a nós que precisamos crer na ressurreição e que precisamos encontrar o Cristo nos/as jovens pobres e excluídos/as. Lembrou que os adultos falhamos com os/as jovens.  Lembrou da radicalidade com que você amava os/as jovens.

Raquel, a número um, chorou muito ao longo do dia. Ali na missa ela falou. Lembrou que você os ensinou que celebrar a eucaristia é comer e beber da utopia. Falou de como você ensinou ela a encontrar Jesus e do quanto você acompanhou e amou. Falou da Flor que recordou algo que você nos ensino: o Divino está na gente. Falou de Quim. Falou do jardim.

Eu também falei. Inclusive pedi para cantarmos em gregoriano que “celebrar a eucaristia é comer e beber da nossa utopia”. Falei que o que nos reunia ali e o que permitia tantas manifestações, de tantos países, só podia ser o amor. Falei de sua fidelidade e provoquei que tivéssemos a mesma fidelidade. Você partiu e agora somos nós que precisamos seguir na fidelidade aos/às jovens.

Aldino falou por sua família. Falou da gratidão. Falou de como a família fez menos por você que você pela família. Falou que deu conta do quão bem a sua vida fez no Brasil e na América Latina. Falou de que percebeu o quanto foste incompreendido, mas o quanto sua vida mudou a vida de tanta gente.

Depois dessas partilhas cantamos “Oferenda Jovem” e aí seguimos com o rito da Eucaristia. Ao comungarmos cantamos “Se calarem a voz dos profetas” e carregamos teu caixão cantando “O mesmo rosto”. Hugo Bersh, que presidiu o rito do enterro, foi sensível. Falou de tua estola como sinal de sua identidade e, cumprindo seu desejo, deixou a estola com tua família para memória. Enquanto cantávamos o mesmo rosto nós jovens da PJ carregamos teu caixão e plantamos você na terra. Rezamos, choramos. Pati chorou muito. Todo mundo chorou. Dudu colocou a tua cruz na terra.

As pessoas foram partilhando a vida, tuas memórias, os afetos e abraços. Tua páscoa reuniu muita gente e fez a gente agradecer tua vida. Aprendi contigo que Tudo é graça. De fato, por tua vida resta imensa gratidão. À medida que as pessoas iam embora, ficamos eu e Raquel ali. Contemplamos o lugar em que te plantamos. Fizemos referência. Choramos. E partimos. Contigo, aprendemos a dar sentido pra aquilo que Jesus disse: “e o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12). Você é semente. Você vive em todos/as nós.

Você foi, mas nós que ficamos, apesar da dor, seguiremos marchando pela vida da juventude e seguiremos fiéis. Ajude-nos a sermos fiéis. Tu me ensinou muito sobre amor e esperança. Tua memória e teu gosto pela memória, me fez um amante da memória. Contigo seguirei crendo que a falta de esperança é heresia. Aliás, lembra quando te falei isso? Contigo aprendi muito do que significa amor. Apesar de doer, seguirei e seguiremos juntos/as. Ajude-nos a sermos fiéis, tal qual você foi. Continue a olhar por nós. Continue a olhar o jardim.

Te amo muito Hilário. Te amamos muito.
Gratidão por ser mestre, pai, avô, inspiração e acompanhante.

Luis Duarte, o pentelho.



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