“Quando eu for vocês ficarão unidos por um laço eterno” (Pe. Floris)
“Lembrança é o que fica armazenado atrás da mente, lá no fundo do sentimento [...] escondido em algum canto da casa. Impossível saber tudo que se esconde lá dentro. Mas o que está fica. Até que acontece algo, alguma coisa mexe com aquela outra coisa guardada na lembrança [...] A palavra desperta a memória. As OUTRAS COISAS que o baú guarda e não são apalavradas prosseguem adormecidas” (Frei Betto. Aldeia do Silêncio, Rocco. 2013, p. 71-72).
Escrever, falar e ouvir são ações que exigem responsabilidades. Falar, por exemplo, é codificar, ou pelo menos tentar codificar sentimentos. Às vezes é tentativa em vão porque certos sentimentos não se permitem codificar, apalavrar. Quando isso acontece, só nos resta contemplar.
“Quando eu for vocês ficarão unidos por um laço eterno!”
Este é (digo no presente de propósito!) um pedido do Floris que durante estes longos 23 anos de sua ressurreição tentamos viver por meio de visitas, mensagens, telefonemas, encontros, cuidados, presenças...
Hoje não tenho dúvidas que foi uma ousadia do Floris ter dito isso para nós. Por que ele fez isso conosco? Não era perigoso demais dizer isso para um grupo tão grande e tão diverso, ou que viria a ser diverso? Para um grupo de pessoas onde “o vir-a-ser” não era previsível? Qual a intenção dele? O que ele esperava realmente de nós? O Floris era uma pessoa que pensava muito antes de falar. Criterioso na escrita... Nele, a palavra, antes de ser pronunciada, percorria um caminho de silêncio, reflexão e de cuidados. O que se passava na sua cabeça ao nos dar essa missão: “Quando eu for vocês ficarão unidos por um laço eterno”? Não era pedir demais para nós uma vez que ele sabia que só por mais um pouco de tempo estaria conosco? Daríamos conta de ficar “unidos por um laço eterno sem ele?” Será que ele pensou nisso?
No decorrer de décadas sonhamos juntos, construímos juntos. Brigamos, choramos... Lutamos por um modelo de Igreja e de sociedade que nos acolhesse a todos e todas. Mas esse “unidos por um laço eterno” não saiu de nossas bocas, mas da boca de alguém que confiava muito em nós e em nosso protagonismo! Que confiou até no nosso futuro ao nos apontar esse modo de ser, de fazer e de viver. Lembro que ele fez esse pedido num momento delicado e de dor na sua vida, no seu corpo. Dor modifica as palavras? Será que na sua fragilidade, no seu corpo em passagem, ele queria continuar em nós?
“Quando eu for vocês ficarão unidos por um laço eterno”.
“Quando eu for...”
Foi difícil escutar estas palavras! Era um momento que ninguém queria. Tem pessoas e situações que queremos eternizar. E se é eterno não tem QUANDO. Quando é temporal, é líquido, é efêmero.
“...vocês ficarão unidos por um laço eterno.”
Esse desejo do Floris foi uma ousadia!
“Quando eu for vocês ficarão unidos por um laço eterno”. Esta é uma condição que só consegue quem ama. Laços são criados entre amantes, entre pessoas vinculadas. Sem amor não existem laços eternos. “Se nos amamos uns aos outros Deus está conosco, e o seu amor se realiza plenamente entre nós” (1Jo 4,12). Amor não é somente sentimento que vem e vai numa fluidez passageira. Amar é permanecer! Nesse sentido podemos falar de “... unidos por um laço eterno”! E se acontecer do amado “ir embora”, não significa que não amei, ou que o amor acabou. Nem tampouco que perdi a capacidade de amar. Trata-se de resignificar os sentimentos, de apalavrar coisas da memória, de revisitar o baú! Assim desenvolvemos uma presença-ausência que só quem ama sente e sabe explicar. Se é que seja preciso explicar amor!
Olhando para um contexto mais geral, amar tem um sentido ético que exige de nós optar por um lado da história. É desse lugar que vejo e interpreto o mundo com seus acontecimentos, que alimento os laços, que crio e sustento minha coletividade. É também a partir desse lugar que amo e alimento meu amor. E nesse lugar ancoramos nossas memórias. O lugar onde escolho estar reverbera minha visão de mundo, de pessoas e de relações.
Desde a década de 80, de maneira especial, nós da Pastoral da Juventude fomos convidados/as a percorrer um caminho. Não só a percorrer, mas também a ser esse caminho! E aceitamos. Essa trajetória nos educou em um jeito de ser Igreja, de fazer Pastoral da Juventude. De lá para cá, crescemos e nos ampliamos. Inventamos e reinventamos espaços orgânicos de diálogos, às vezes nem sempre fáceis devido às nossas diversidades. De uma coisa não podemos abrir mão: se amamos e seguimos a Jesus, não podemos concordar com nada que nega o Projeto dele.
Somos humanos, portanto, vulneráveis. E se pensamos a vulnerabilidade como algo próprio do humano, cuidaremos melhor uns dos outros e das outras para não nos desumanizar. É muito triste quando nos deparamos com pessoas desumanizadas. Elas desenvolvem a capacidade de odiar. Vivem em constante desamparo...
Se queremos permanecer ligados por um laço eterno não podemos perder a capacidade de dialogar. O que atrapalha o diálogo, dentre outras coisas, é um olhar prévio carregado de rótulos. E esses rótulos podem colocar muita gente de fora do “laço eterno”.
Outro dispositivo do ódio é o fundamentalismo. O fundamentalismo trabalha com uma verdade absoluta, uma relação supra histórica, portanto, não passível de interpretação, nem de revisão, nem de discordância. Isso cria uma aversão à subjetividade do outro/a. Se tenho uma verdade absoluta, ela não pode ser questionada. O outro é o errado, o não-ser, o desgarrado. Isso cria antipatia que tira a sacralidade do outro. Cria fechamentos e o diálogo infelizmente é sepultado.
O ato de falar, como já mencionamos, tem implicações. Por isso é importante situar o lugar de fala. É comum dizer que afirmar um lugar de fala, sobretudo quando se refere aos pobres e minorias, traz cisões, separações. Mas acredito que seja justamente o contrário. Nós que participamos da Pastoral da Juventude, historicamente fomos construindo o nosso lugar de fala. E deste lugar de fala, fomos criando e recriando nossas utopias. Desse lugar de fala criamos projetos de vida, projetos comuns. Desse lugar de fala defendemos a Civilização do Amor. Será que não está aqui um dos grandes fundamentos do nosso “laço eterno” desejado pelo Floris?
Hoje, de forma mais intensa, passamos por um momento que querem deslegitimar esse nosso lugar de fala. Na Pastoral da Juventude aprendemos a romper e a desconstruir as narrativas dominantes que tentavam nos colocar em lugares aonde não aceitávamos estar. Na Pastoral da Juventude desenvolvemos, dentre outras coisas, a capacidade de escutar subjetividades. Aprendemos a “falar em nosso nome” (isso é extremamente libertador!), desconstruindo discursos hegemônicos. Aprendemos a recontar histórias que nos foram contadas, a recolocar personagens, falas, tempos e lugares das narrativas. Com força coletiva giramos os palcos para as direções onde acreditávamos que eles deveriam estar. E conseguimos em grande parte... Conferimos visibilidades a nós mesmos e a tantas pessoas. Restituímos humanidades. Deixamos de acreditar que quem possui privilégio social, possui também o poder de decisão sobre nossas vidas e projetos. Talvez não nos damos conta, mas desconstruímos falsos discursos que nos foram postos como universais, autorizados e únicos.
Falar a partir da Pastoral da Juventude, desse importante lugar de fala, que nos educou e nos ajudou a ser quem somos é, sem dúvidas, uma importante premissa para defender a possibilidade de continuarmos “unidos por um laço eterno!”.
Eu aprendi na Pastoral da Juventude e me tornei um SER de POSSIBILIDADES. De ser antítese quando a realidade exigir. Ou de sofrer, e sofrer muito, quando não posso ser o que gostaria ou mereceria ser!
Aceitar que estamos ligados por um laço eterno nos coloca, necessariamente, em um lugar de fala. Que lugar é esse? Precisamos ter clareza! Caso contrário, entraremos em outra dinâmica de relações onde o laço se romperá. Embora falamos em UNIVERSO, habitamos um PLURIVERSO. Isso exige de nós inteligência, leveza e vigor nos projetos e convicções que não podemos abrir mão. É certo que os lugares de fala incomodam. Sobretudo quando não são “oficiais”, institucionalmente falando. Confrontam poderes, desestabilizam hegemonias.
Permanecer unidos por um laço eterno é assumir uma causa, um projeto de vida. Não pode ser esvaziado a ponto de nos contentarmos em vê-lo como slogan estendido entre dois postes numa rua movimentada da cidade. Mas, ao contrário, unidos por um laço eterno, deve provocar em nós vida e vida em movimento numa direção clara, profética e transformadora.
Recordar esse desejo do Floris: “Quando eu for, vocês ficarão unidos por um laço eterno” é admitir que ele está tão presente em nós! É uma tentativa de apalavrar, mesmo depois de 23 anos de sua ressurreição, tantos desejos dele, que hoje são nossos, e que continuam a nos ajudar a construir a tão sonhada Civilização do Amor, do Bem Viver.
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