Marcelo Barros, um irmão do caminho faz um testemunho, publica no seu facebook. Nós publicamos aqui, com gratidão ao Marcelo e ao Pedro Casaldáliga pelas vidas doadas.
Muito obrigado, Pedro! (Pedro Casaldáliga)
Hoje, você completa 90
anos. O corpo está fragilizado e muito limitado pelos ataques do mal que
você, franciscanamente, chama de “irmão Parkinson”. A mente, como
sempre lúcida, continua o seu profetismo.
Agradeço a Deus pelo fato que,
desde a metade dos anos 70, o tenho como mestre. Desde que, junto com
os irmãos Pedro e Filipe, cheguei como monge, em Goiás (1977), nos
tornamos companheiros de caminhada na Pastoral da Terra, no amor aos
índios e na luta para tornar a Igreja mais evangélica e libertadora. Os
nossos contatos se intensificaram pelo fato de que, naqueles anos,
várias vezes, você e a equipe da prelazia me convidaram para participar
de assembleias, encontros bíblicos e penso que preguei dois ou três
retiros anuais para os agentes de pastoral . Eu que ia para ajudar
acabava sendo muito mais formado por vocês. Além disso, estávamos juntos
na coordenação nacional da CPT e na assessoria do CIMI.
Quantas vezes,
viajamos juntos de ônibus de Goiânia a Salvador e ao interior de Minas.
Não esqueço o seu malabarismo para ir como pobre de Goiânia a São Félix.
Às vezes, tomava o ônibus noturno para São Miguel do Araguaia e lá o
aviãozinho de linha que o levava a São Félix.
Uma vez, no começo
dos anos 90, chovia muito. Você vinha de uma assembleia dos bispos da
região. Tinha sido uma assembleia tão tensa e tinha lhe deixado tão
triste e abatido que lhe atacou uma febre e mal estar. No meio da noite,
no ônibus, você se sentiu mal e pediu ao motorista para dar uma parada e
desceu. O motorista achou que você ficaria lá e foi se embora com o
ônibus e sua mala. Você ficou sozinho e, sem mala, nem dinheiro, às duas
da madrugada, no meio da chuva e do nada de um ponto qualquer do
Cerrado. Eram duas da madrugada e você andou na chuva e no frio (com
febre) até encontrar um casebre onde um casal de lavradores o acolheu,
lhe deu roupa enxuta e ali você passou o resto da noite. De manhã cedo,
acorda com eles dois escutando o rádio e lhe ouvindo falar a palavra do
evangelho. E o homem lhe explica: “Diariamente, pela manhã, só vou para
o trabalho depois de ouvir a palavra do nosso bispo”. E você hesita em
lhes dizer que aquele bispo era você. Lá em São Félix, eu e todos lhe
esperando sem saber o que tinha acontecido e você só chegou no avião
seguinte (24 horas depois).
Já nos anos 90, estávamos juntos em
Luciara, nas margens do Araguaia. Você tinha insistido em que eu fosse
falar sobre a água e a defesa do rio. Estávamos hospedados no mesmo
quarto da casa do diácono. Á tarde, chegam duas senhoras e contam que os
maridos tinham recebido dinheiro de um latifundiário e vinham armados
para, naquela noite, matar você. Você se negou a interromper o encontro.
Com muita insistência, aceitou regressar a São Félix no dia seguinte de
madrugada, de barco pelo rio e não pela estrada. À noite, naquele
quarto, nós dois, mediados por uma janela de madeira que bastava um
chute e a janela caía. Lá fora, homens da comunidade se revezavam. Mas,
enquanto você dormiu toda a noite, eu passei a noite inteira ouvindo
ruídos do outro lado da janela. Hoje, tenho vergonha do meu medo.... E
de como você dormia tranquilo... .
Mas, esse meu testemunho é para
falar de você e não de mim. Poucos bispos que conheci atravessaram o
túnel dos tempos de João Paulo II e Ratzinger, fieis a aquilo que
acreditavam e com a coragem de ser testemunhas do reino, mesmo quando a
hierarquia não era. Nos meados dos anos 80, quanto bem você fez, em sua
missão pela Nicarágua sandinista, por El Salvador, pela América Central e
ainda Cuba... Quanta dor em ver que o próprio papa não o apoiava.
Alguns bispos locais pressionavam o Vaticano. E o Cardeal Sodano,
secretário de Estado, o ameaçava e exigia, em nome do papa que você
abandonasse aquela missão. Na ocasião, você confessava aos mais
próximos: “Obedeço quando é para cumprir o evangelho, mas não quando é
para me descumpri-lo e falhar com os irmãos que sofrem. Nesse caso,
serei obrigado a renunciar ao ministério de bispo, mas continuarei junto
deles”.
Como resumir tudo o que os Xavantes, Tapirapés e Karajás
da ilha lhe devem na defesa de suas terras e suas culturas? Obrigado por
ter aprendido de você esse amor reverencial que até hoje me comove,
quando encontro um índio e, nele ou nela, posso adorar a figura de
Jesus, meu mestre e Senhor. Você sempre uniu a sua profunda fé orante e
a certeza de que não há caminho de justiça e paz dentro dos padrões do
Capitalismo e nessa farsa de Democracia que ainda temos. Sempre deu
apoio total e profundo à nossa investigação teológica (da ASETT) sobre o
Pluralismo Religioso e os muitos nomes de Deus.
Quantas coisas eu e
tantos/as cristãos/ãs lhe devemos nesse caminho de uma espiritualidade
social e política libertadora? Só podemos agradecer lhe confirmando hoje
que vamos sim nos manter firmes no caminho, vamos sim, mesmo
conscientes de nossa pobreza, continuar a sua profecia nesse mundo e,
mesmo sem ter sua veia poética e sua profunda inteligência espiritual,
vamos lutar para permaneça sempre viva a sua chama mística e
revolucionária que faz com que qualquer pessoa que o veja, sinta em
você, como que exalando de sua pele, a presença viva do Espírito de
Ternura que o inspira e o move.
Muito obrigado, PEDRO CASALDÁLIGA,
profeta da ternura revolucionária...
Abençoe o grupo da Partilha,
grupo leigo, fundado por Dom Helder que, amanhã, celebrará comigo essa
memória, em agradecimento a Deus pela sua vida. Abençoe também esse seu
irmão Marcelo Barros
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